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A dignidade nunca foi fotografada

  • …podemos encontrar a dignidade na continuidade das boas ações humanas, e na compreensão da história das tragédias da humanidade que se viu forçada a entender o que é a dignidade para fundamentar a garantia à vida, à igualdade, à segurança, à solidariedade e tantos outros direitos cujo exercício não cabe no instantâneo de uma fotografia.

Quanta gente implica com a expressão dignidade da “pessoa humana”… O moleque esperto já disse: por que falar em “pessoa humana”? Por acaso existe pessoa que não é humana? Ou humano que não é pessoa? A dúvida é compreensível. Humanos são pessoas e pessoas são humanas. Mas será que o moleque esperto percebeu que toda pessoa tem dignidade e dignidade só existe nas pessoas, digamos, humanas? É tudo muito redundante mesmo, bastaria dizer dignidade. Aliás, por que restringir a dignidade às pessoas humanas?

Por que não estendê-la a pessoas cetáceas ou a pessoas primatas, pessoas felinas, caninas? Bom, isso é assunto para outro post, de preferência em outro blog talvez intitulado o Direito das larvas, filhotes e… Ai, ai… Melhor deixar pra lá. O Direito não aceita que os animais tenham direitos e deveres. No Direito, apenas as pessoas têm direitos e deveres, e apenas os humanos nascidos e vivos são pessoas.

Nós só protegemos os animais porque nós, apenas nós, pessoas humanas, temos direito ao “meio ambiente equilibrado” e à biodiversidade (art. 225 da Constituição). É verdade que o Direito proíbe maus tratos e crueldade com os animais, mas permite que sejam criados em confinamento, sejam mortos para a alimentação da pessoa humana. A maioria de nós (eu me incluo nesse grupo) aceita que o ser humano prenda um macaco em uma gaiola no zoológico (na verdade tenho algumas crises de consciência por causa disso) ou mate um boi para comer (devo reconhercer que eu gosto de um bom churrasco), mas não aceita que uma pessoa mate outra, nem para se alimentar. O Direito ainda considera o ser humano superior a outros animais, e reconhece nas pessoas o que chama de dignidade. Outros animais podem ser inteligentes, sensíveis, amigos fiéis, podem cantar, se emocionar, lutar por sua cria, mas, segundo o Direito, não têm dignidade, infelizmente…

Os direitos só existem e nós só temos direitos porque temos dignidade. Dignidade humana é o fundamento do Direito, é o fundamento da Constituição. Sobre a dignidade é construída a República brasileira.

Na verdade, poucos sabem o que é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (a maioria ainda está preocupada com a redundância, o pleonasmo da expressão “pessoa humana”). Dignidade é um conceito que varia muito de um povo para outro, de uma época para outra. Vamos ver se conseguimos entender um pouco a dignidade. Prepare-se, o texto a seguir não é muito fácil, quero dizer, é mais difícil do que os outros que publiquei no blog. Se você tem pouca idade e não conseguir entender, peça ajuda a seus pais. Se ainda assim você tiver dúvidas, não fique triste. Ter dúvidas ou não entender é muito normal e saudável, acontece com as pessoas mais inteligentes. Problema é achar que entende e, na verdade, entender tudo errado.

Para José Afonso da Silva1, dignidade humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Para Alexandre de Moraes2, a dignidade humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas.

A Constituição consagrou o Princípio da Dignidade Humana (art. 1º, III) como fundamento da República Brasileira e cláusula geral de proteção da personalidade. Canotilho3, ao tratar da Constituição da República Portuguesa, explica o que é uma república baseada na dignidade humana: “é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios”.

Ingo Sarlet4 observa que a ideia de dignidade como valor intrínseco da pessoa humana tem raízes no pensamento clássico e nas ideias cristãs. No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, falava-se em pessoas mais dignas ou menos dignas merecendo maior ou menor respeito dependendo da posição social que ocupavam. Já no pensamento estóico (Doutrina filosófica fundada por Zenão, no séc. III a.C. que prega a rigidez moral e a serenidade diante das dificuldades) a dignidade era tida como a qualidade inerente ao ser humano que o distingue das demais criaturas. Todas as pessoas tinham igual dignidade, a qual estava ligada à noção de liberdade. No cristianismo, todos os homens têm dignidade pois foram criados à imagem e semelhança de Deus.

Desviando-se da tradição religiosa, Immanuel Kant5 construiu uma nova concepção de dignidade a partir da natureza racional do ser humano e sua consequente autonomia da vontade. Kant sustenta que “o homem, e de uma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”. Kant afirma ainda a qualidade peculiar da pessoa humana dizendo que “quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade…”

O pensamento de Kant tem estado presente na conceituação de dignidade da maioria dos autores nacionais e estrangeiros, mas não faltam contrapontos: Sarlet destaca a Filosofia do Direito de Hegel6, por exemplo, segundo a qual o homem não nasce digno, mas torna-se digno a partir do momento que assume a condição de cidadão. Assim como na concepção de São Tomás de Aquino, a dignidade, para Hegel, é uma qualidade a ser conquistada. O próprio Sarlet, embasando-se na doutrina de Dworkin, critica essa posição citando o exemplo do recém nascido, ou o acometido por demência, a quem não deixa de beneficiar o Princípio da Dignidade Humana.

Há quem defenda ainda a noção de dignidade entendida como algo que não é exclusivamente apriorístico, inerente ou inato à pessoa humana, pois a dignidade também seria construída culturalmente7. Nesse sentido não teria um conteúdo universal e fixo. Para Dworkin8, por exemplo, cada sociedade civilizada tem seus próprios padrões e convenções a respeito do que constitui a dignidade.

Devemos evitar, contudo, a crítica simplista ao pensamento de Kant, daqueles que afirmam que o homem, por não ser meio, não poderia prestar serviços ou se submeter hierarquicamente a outro homem. Kant nunca afirmou que o homem não pode ser “instrumentalizado” e servir espontaneamente à realização de fins de terceiros, sem ter degradada sua condição humana9. A proibição da instrumentalização humana ocorre somente quando se usa a outra pessoa apenas como meio para se alcançar determinada finalidade egoísta. No mesmo sentido, Dürig10 afirma que há violação da dignidade quando a pessoa é rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como coisa, em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos.

Ainda para esclarecer e para uma melhor definição do conceito kantiano de dignidade humana, é preciso frisar que este não se aplica em abstrato e não se confunde com a dignidade da humanidade em geral11. A dignidade humana constitui atributo do indivíduo e não de um ser ideal ou abstrato. E quando apontado na Constituição como fundamento da República, tem a finalidade de evitar o sacrifício do indivíduo em prol da coletividade.

Apesar de aplicável ao indivíduo, a dignidade é em parte ligada à relação entre as pessoas, diz Kant:

“é verdade que a humanidade poderia subsistir se ninguém contribuísse para a felicidade dos outros, contanto que também lhes não subtraísse nada intencionalmente; mas se cada qual não se esforçasse por contribuir na medida das suas forças para os fins de seus semelhantes, isso seria apenas uma concordância negativa e não positiva com a humanidade como um fim em si mesmo. Pois se um sujeito é um fim em si mesmo, os seus fins têm de ser quanto possível os meus, para aquela ideia poder exercer em mim toda a sua eficácia”.12

Após todas essas observações, Sarlet chega à seguinte definição de dignidade humana:

“qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.13

Como consequência do próprio caráter relacional do Princípio da Dignidade Humana, é preciso reconhecer a sua necessária relativização face à igual dignidade de todos os outros seres humanos. Sendo todas as pessoas iguais em dignidade (embora não se portem de maneira igualmente digna), a dignidade de um indivíduo poderia ceder quando o intuito for o de salvaguardar a dignidade dos demais integrantes da coletividade. Mas a dignidade humana, como norma fundamental possui um núcleo essencial que, este sim, seria intocável.

Se a dignidade é uma característica que nasce com cada ser humano e faz parte de cada pessoa, por que lutamos tanto por ela? Por que temos medo de perdê-la? Por que alguns simplesmente dizem que não a encontram? Se você, moleque esperto, se você chegou ao fim deste texto e acha que a dignidade definida por cada um desses autores não existe, tente reinventá-la, porque sem ela nós seríamos apenas animais que não poderiam nem sonhar com direitos. Sem a dignidade, não poderíamos condenar a escravidão, o holocausto, as experiências científicas realizados à força em seres humanos, não poderíamos tentar evitar o trabalho infantil, a prisão perpétua, a pena de morte e tantos outros abusos cometidos pela humanidade em que o ser humano é covardemente reduzido a meio de satisfação das finalidades da população dominante ou do poder estabelecido. Afirmar a dignidade do ser humano é uma forma de defender cada indivíduo, é afirmar que a pessoa tem direitos a serem respeitados que emanam da própria pessoa, de sua dignidade. O ser humano precisa de dignidade e precisa protegê-la em seus semelhantes para não correr o risco de alguém dizer que certas pessoas não a possuem, pois um dia alguém pode achar que você não tem dignidade… portanto não tem direitos… portanto pode ser usado como um boi, um cavalo, uma cobaia de laboratório.

Por isso, se, como disse Bob Dylan, a “dignidade nunca foi fotografada”, se ela não se manifesta na aparência estática capturada em determinados momentos nem em determinados lugares, por mais felizes que sejam, devemos encontrar um jeito de enxergá-la na conduta de cada um de nós, na continuidade das relações entre as pessoas, na construção das amizades e das famílias, no esforço pela realização de projetos individuais ou coletivos. Acredito que podemos encontrar a dignidade na continuidade das boas ações humanas, e na compreensão da história das tragédias da humanidade que se viu forçada a entender o que é a dignidade para fundamentar a garantia à vida, à igualdade, à segurança, à solidariedade e tantos outros direitos cujo exercício não cabe no instantâneo de uma fotografia.

Referências:

1. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. – São Paulo: Malheiros, 2005. Pág. 105.

2. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. – São Paulo: Atlas, 2005. Pág. 16.

3. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.– 7a edição – Coimbra: Almedina, 2003. Pág. 225.

4. SARLET, Ingo Wofgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2008. Pág. 30.

5. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Os pensadores – Kant (II) Pág 134-135. Apud: SARLET. Op. cit. Pág. 34

6. HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 36, p. 95. Apud SARLET, Op. cit. Pág. 38.

7. SARLET. Op. cit.Pág. 49.

8. DWORKIN, R. El dominio de la vida, p‘305. Apud SARLET. Op. cit. Pág. 59

9. SARLET, Op. cit. Pág. 53.

10. DÜRIG, Günter. Der Grundsatz der Menschenwürde duch allgemeine Programmgrundsätze, München: Reinhard Fischer Verlag, 1999. Apud SARLET. Op. cit. Pág. 61

11. SARLET. Op. cit. Pág. 54.

12. KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Os pensadores – Kant (II) Pág 136-137. Apud: SARLET. Op. cit. Pág. 55.

13. SARLET. Op. cit. Pág. 63.

14. DYLAN, Bob. Dignity

.
Fat man lookin’ in a blade of steel
Thin man lookin’ at his last meal
Hollow man lookin’ in a cottonfield
For dignity
.
Wise man lookin’ in a blade of grass
Young man lookin’ in the shadows that pass
Poor man lookin’ through painted glass
For dignity
.
Somebody got murdered on New Year’s Eve
Somebody said dignity was the first to leave
I went into the city, went into the town
Went into the land of the midnight sun
(…)
Someone showed me a picture and I just laughed

Dignity never been photographed

I went into the red, went into the black

Into the valley of dry bone dreams.

.
So many roads, so much at stake
So many dead ends, I’m at the edge of the lake
Sometimes I wonder what it’s gonna take
To find dignity?

.

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